O jeito baiano de enfrentar a crise
Fim de ano na Bahia é temporada de caça aos Carurus. Todo baiano sabe disso, e o pior, cobra isso. Nas redes sociais sempre aparecem diversos cards de autoconvites do tipo: “aceito convites para caruru”, ou ainda “Acompanhante profissional para Carurus”. A tradição vem do sincretismo religioso, onde São Cosme e São Damião (aqueles que mandam fazer duas ‘camisinha’ azul) pedem caruru. Na verdade, quem pede o bendito prato são os Ibejis (orixás crianças) mas como na Bahia é tudo misturado, ninguém sabe onde começa o “Amém” ou onde termina o “Bejiróó”. Outro “caruréu” tradicional é o de Iansã, ou Santa Bárbara, dia 4 de dezembro. Esse é comendo e gritando: Epahei Oyá! Mas falemos de tradições.
Antigamente o prato era servido, primeiramente, para 7 meninos. Tudo misturado numa bacia e a pivetada comendo de mão. Era uma maravilha. Um espetáculo dantesco, com direito às mãos amarelas do dendê, cara suja, e em alguns lugares, o batuque comendo no centro. Os adultos acompanhavam rindo daquela festa da criançada e esperando sem muita paciência a vez deles se esbaldarem com aquele agdá transbordando de caruru, vatapá, galinha, banana frita, abarázinho, acarejézinho, feijão branco, cana, arroz e aquela farinha de macumba (algumas ainda vêm com mel, como no de minha Tia Dora). Vixi! Só de escrever dá vontade.
Mas agora, meus amigos, os tempos são outros. O tempo da bonança acabou e o bicho tá pegando aqui pelas bandas da Bahia, também. Os convites ficaram escassos. E até alguns “santos” vêm sendo sacrificados. Nunca mais achei aquelas balinhas de mel que vinham nas macumbas. Dinheiro em ebó, então, pode esquecer. Não existe mais também. Outro dia tinha um ovo num despacho aqui perto de casa. Deve ser um ebó do tipo Minority Report, afinal, no futuro, aquele ovo pode vir a ser uma galinha preta. A tradicional garrafa de Pitú foi substituída por umas “bombinhas” de cachaça de “3 conto”. É meu irmão, a crise chegou do “outro lado” também.
Só que tradição na Bahia, meu rei, é sagrada. E mesmo com os ajustes fiscais, a coisa acontece. Ou no máximo, se adequa. Esse ano recebi uma mensagem inusitada no whatsapp, que revela duas coisas. A paixão em manter a tradição e a malandragem do baiano. Os caras me mandaram uma imagem do “caruru de 7 compartilhadas”. Uma foto do prato mais característico do Brasil aliado a frase “compartilhe com 7 amigos”. Essa imagem revela bem a cara do baiano. Pense num brasileiro abusado! É esse povo da Bahia.
Essa característica do brasileiro de rir dos seus problemas, aqui na Terra do BaVi é elevada à 5ª potência. Caymmi já cantava que a Bahia é a Terra da Felicidade e isso fica evidente no nosso jeito de ser e de enfrentar as coisas. Tostando dentro do paletó e gravata num sol de 35 graus no juízo. Nos fins de semana nos buzus lotados, entre a Lapa e Itapuã pra “comer água” e voltar todo sujo de areia pra casa. No trânsito insuportável e insolúvel da região do Iguatemi (o shopping que mudou de nome mas ninguém chama de “da Bahia”). Fica evidente na “mundiça” do nosso carnaval do lado da “corda” do (agora vereador) Igor Kannário. Fica claro no metrô de 1º mundo que corta os bairros de 3º, mostrando, pelas janelas, a linda Arena Fonte Nova e a encosta do bairro popular de Cosme de Farias. Ser baiano é rir do “Caruru de 7 Compartilhamentos” e mesmo sabendo que essa zorra é brincadeira, a gente compartilha pra 7 amigos. Porque na dúvida, ninguém vai quebrar uma corrente dessas.
Viva a Bahia! Suas tradições, seus pratos maravilhosos, suas festas, suas maluquices. Esse povo que tem Deus no coração, o diabo no quadril e acende vela pros dois. Porque aí nem o diabo atenta, nem Deus castiga. Viva o candomblé, que mesmo sem Deus e sem diabo, traz caruru pra gente todo ano. Axé!
Erick da Silva Cerqueira – Publicitário, espírita, católico apostólico baiano, comedor de carurivis, pai de Thor e torcedor do Bahia.
Texto escrito originalmente para o Jornal Sabiá, de Portugal.